quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

O jornalismo como ele é


E vem aí mais um "dia do jornalista": é o Dia de São Francisco de Sales, padroeiro dos jornalistas (24 de janeiro). Como jornalista adora uma efeméride para justificar suas pautas, segue aqui um breve e modesto manual de como sobreviver a esta profissão, seja você um representante dela ou um nobre leitor. Se persistirem os sintomas, procure outra carreira.

O que entender quando o jornal diz a seus leitores:
"Crime que chocou o país" = "Foi na Zona Sul do Rio, ou na Vila Nova Conceição em São Paulo."
"Os bandidos estavam bem vestidos" = "Eram todos brancos. E não tinham cara de pobres."
"Bandidos de classe média" = "Porque bandido tem que ser pobre. Ou vice-versa."
"Bon vivant" = "vagabundo/excêntrico"
"Ele tinha uma vida de luxo" = "Era um empresário rico, e/ou bicheiro."
Algo foi feito "sem alarde" = "Fomos furados, e a concorrência deu antes."
Governo faz algo e "causa polêmica" = "Nós não entendemos muito bem o que aconteceu, mas a fonte que nos passou a informação é da oposição e está p*.* da vida."

O que um jornalista de redação entende quando um(a) assessor(a) de imprensa diz:
"Gente, essa é a última pergunta." = "Galera, fique à vontade, eu e o entrevistado não temos mais nada para fazer hoje."
"Você pode me mandar essa pauta por e-mail?" = "Não ouvi e não anotei nada do que você falou nos últimos 15 minutos. Estou enrolado(a) com outros 18 clientes."
"Já te ligo." = "Não te ligo."
"Vou ver qual o melhor horário para ele te atender." = "Ele não vai falar."
"Pode deixar, vou procurar um posicionamento da empresa e te retorno." = "Não tem a menor chance de o meu cliente falar com você."
"Oi. Estamos atualizando nosso mailing. Você poderia me confirmar alguns cargos aí da redação?" = "Você pode me passar os nomes e telefones de todo mundo que trabalha aí durante duas horas, sem receber nada em troca, porque meu chefe não quer pagar um serviço que já faz isso?"
"Qual o dia do seu aniversário? Qual seu endereço residencial?" = "Vamos te mandar um iPad de jabá. Talvez um carro."
"Você pode me mandar a matéria quando sair?" = "Eu não leio jornal."
"Quem aí cobre economia?" (ligando para um jornal ou agência que só cobre economia) = "Eu não faço ideia de para onde eu estou ligando."
"Me passa o número do seu celular?" = "Vou te ligar domingo ou sábado à noite."

O que entender quando um jornalista diz ao entrevistado (ou ao assessor):
"Desculpe ter ligado no seu celular." = "Perdeu, playboy!"
"É só um encontro de aproximação, não é uma entrevista." = "Isso, se o boçal do meu chefe não fosse me encher o saco para eu escrever uma matéria, mesmo eu tendo dito que era só um encontro para fazer fonte e que ele diga sempre que eu preciso fazer este tipo de coisa."
"A pauta caiu." = "Graças a Deus."
"Na última vez em que a gente se falou eu estava no (nome do jornal ou da revista)." = "Olha como eu sou fodão. Já trabalhei num lugar melhor, antes de vir para esse jornal mural de bairro."
"Consegui estender o prazo da matéria para vocês poderem falar." = "Minha matéria foi para a gaveta, talvez caia."
"Você pode confirmar se isso que eu estou escrevendo está certo?" = "Posso te ler ou te enviar a matéria para você revisar?"
"Você tem mais alguma coisa a acrescentar?" = "Não consegui tirar uma notícia, até agora, de tudo o que você falou. Por favor, me ajude."
"Nossa linha editorial" = "Conjunto de regras subjetivas e não escritas que servem como desculpa para toda decisão que tomamos com objetivo de favorecer nossos amigos e prejudicar nossos inimigos, coincidindo com os movimentos lunares, da maré e do humor do chefe e/ou do dono do jornal."
"Esse assunto é muito específico." = "Não vamos cobrir isso nem a pau, assunto chato do cacete."
"Puxa, não vamos conseguir cobrir o evento..." = "Você tá doido(a)?! Faz alguma ideia de para onde você ligou e de que tipo de assuntos nós cobrimos antes de mandar essa sugestão ridícula?!"

"Me passa o número do seu celular?" = "Vou te ligar domingo ou sábado à noite."

O que um jornalista entende quando o outro diz:
"Você quer que eu corte?" (repórter pergunta ao editor) = "Deixa eu editar o meu próprio texto para não correr o risco de você fazer a merda de cortar justamente a melhor parte, como costuma acontecer."
"Você quer que eu corte?" (editor pergunta ao repórter) = "Solta logo essa merda! Não vai atrasar o fechamento de novo!"
"Quer que eu corto?" = O mesmo significado das duas alternativas anteriores, só que em São Paulo.
"A partir de agora, todos os repórteres serão multimídia, escreverão para o jornal, o site e ainda farão vídeo." (editor fala à sua equipe) = "Você trabalhará mais ganhando o mesmo salário."
"Se souber de alguém interessado nesta vaga..." (um colega pergunta ao outro, por e-mail) = "Essa vaga é a sua cara, caso você já esteja de saco cheio e desiludido com o seu emprego novo, depois de ver que tem o mesmos problemas do anterior..."
"A operadora de telefonia celular X está com um problema seríssimo em sua rede, temos que apurar." (algum editor-executivo fala ao pauteiro ou repórter) = "Minha mulher (meu marido) está com problema no aparelho dele, provavelmente porque não sabe usar. Vocês podem mobilizar a operadora inteira para resolver isso?"
"Teve um passaralho lá no jornal.." (um colega conta ao outro, de outro veículo) = "Tô ferrado. Se souber de algum frila, me fala."

O que um jornalista entende (ou deveria entender) quando o RH diz:
"Nossa empresa tem benefícios." = "Nossos funcionários têm desconto de 10% na assinatura do jornal que eles mesmos fazem, sobre o preço cheio de banca, o que significa que você pagará mais do que um mortal assinante em qualquer promoção ridícula que fazemos em que o sujeito ainda leva a revista Veja de graça, um microondas, ou uma travessa de vidro."
"Todos nossos funcionários têm os mesmos benefícios." = "O plano de saúde da chefia é muito melhor, ainda que eles também ganhem muito mais e possam pagar médicos melhores. Pobre não tem doença que precise ser tratada no Einstein. Ah, o bônus dos editores-executivos também é desporporcionalmente maior, afinal quem faz vender mais jornal e anúncios são eles, e não você, que se ferra e se preocupa em fazer matérias diferentes diariamente."
"O jornal só tem a ganhar com essa sinergia." = "Claro, é você que vai sair perdendo com esse nome mais bonito que demos para a mais-valia."
"[Fulano(a)] será promovido(a) ao cargo de [repórter/editor/redator/diagramador]-especial" = "Queríamos dar um aumento a todo custo para ele(a) porque ele(a) é amigo(a) do chefe, mas não tínhamos como justificar isso para o resto da redação, já que teria gente que mereceria muito mais. Por isso, inventamos essa novo cargo ridículo, afinal todos têm que acreditar que temos plano de carreira."
"Temos plano de carreira." = "Você entra como estagiário, um dia é promovido a repórter por R$ 10,00 a mais, só para passar a pagar Imposto de Renda, perde sua vida pessoal e familiar, trabalha aqui até morrer, morre, e nós abrimos novas vagas no curso de trainees. No meio do caminho, você verá amigos da chefia sendo promovidos sem muito esforço. Isso, claro, se antes disso não tivermos como plano para sua carreira que você vá trabalhar em outro lugar, morrer de fome, ou viver de frila, e te joguemos num passaralho com a desculpa de que você 'ganha bem' e o jornal precisa cortar custos."
"O caderno em que você trabalha será descontinuado." = "Sifu."

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